segunda-feira, 6 de outubro de 2008

O umbigo dos outros



Depois de um dos membros da Academia Sueca que atribui o Nobel da Literatura, Horace Engdahl, ter vindo a público referir-se à suposta menoridade da literatura norte-americana (ou, mais concretamente, estado-unidense), não se vislumbram hipóteses de prémio para Don DeLillo – repare-se, falo em DeLillo e não em Philip Roth, embora Thomas Pynchon também pudesse ser nomeado como próximo não-nobel americano.

Ora, eu achei piada às vistas curtas do senhor sueco, não por que não tenha razão – não tem – mas porque li, logo de seguida, uma ou outra indignação de admiradores de Roth e/ou pró-americanos empedernidos que disparam ao primeiro farejado odor de anti-americanismo. As vistas curtas do sr. Engdahl são prova de uma ou duas coisas, portanto: de que existe ideologia por trás das intenções do júri, se não sempre, muitas vezes; e, principalmente, que os membros se dão ao trabalho de realmente ler milhares de páginas produzidas por autores que não escrevem em inglês (duvido que leiam autores franceses, duvido até que eles não acreditem que a França terminou enquanto país quando Marguerite Yourcenar – que não recebeu o Nobel – morreu). Vamos lá ser sérios: partindo do princípio de que o Nobel é, de facto, o prémio mais importante que um escritor pode receber (e de que recebê-lo é essencial, para a obra ou para o autor), quantos de nós poderão dizer que este ou aquele escritor merece o prémio, em detrimento de outro? Porque a vida de um leitor, caros amigos, é uma vida falhada, em perda; por cada novo escritor que conhecemos (ainda que sejam largas dezenas por ano), há cem de que nunca iremos ouvir falar, seja pela inexistência de traduções em qualquer língua que entendamos, seja porque sim, porque escolhemos. São coisas óbvias, eu sei, mas a humildade impede-me de não as dizer de quando em vez. Queremos falar de gosto? Não me interessa, declaro que a subjectividade não me assusta. Mas antes que embarque na barcaça romba da retórica estéril, deixem-me que pegue num excerto (é sempre bom pegar num excerto) do tipo que escreve sobre literatura mais ideologicamente motivado que eu conheço (com o Alexandre Soares Silva muito perto, mordendo os calcanhares): João Pereira Coutinho, pela mão do Pedro Vieira: “e, segundo, porque o Nobel premeia escritores humanistas, ou seja, optimistas, que oferecem à academia sueca uma visão inspiradora, e muitas vezes sentimental, da natureza humana.” Não sei de que escritores fala ele, mas espero que não seja de Saramago, Dario Fo, Harold Pinter ou Joseph Brodski, caso contrário começo a duvidar do, até agora, impecável gosto do cronista, o que seria uma chatice, já que politicamente nunca me servirá uma chícara de chá que seja. Tudo para justificar o horror de não escolher o Roth, por ser americano. Mas Coutinho terá lido tudo o que os membros da Academia leram, todos os escritores humanistas e politicamente empenhados que concorrem entre eles para o premiozinho de uma vida? É esse o meu ponto.

A verdade é que a literatura dos E.U.A. é, quase sempre, “provinciana” e “fechada sobre si própria”. O problema é que o umbigo dos E.U.A. é de supremo interesse universal, e o olhar do mundo inteiro está definitivamente focado nele (ninguém sabia?); julgo que a isto se chama (com todo o despeito que merece) globalização cultural, mas posso estar errado. Toda a grande literatura americana é, antes de mais, um elogio do modo americano de viver; o grande romance americano, de Melville a Pynchon, de Thomas Wolfe a Philip Roth, tem características comuns que reflectem o espírito de uma nação e de um povo: os valores do individualismo, da demanda épica, da transcendência das origens, do combate a qualquer adversidade, a qualquer custo. E, lamento, João Pereira Coutinho, o principal impulso que conduz todos estes heróis americanos (Ahab, Eugene Gant, Sal Paradise, Nathan Zuckerman) é o humanismo. 

Nem Coutinho nem Engdahl. Os valores americanos são universais, as obsessões culturais que aparecem exaustivamente fetichizadas na literatura americana (o gosto pelos desportos autóctones – basebol, futebol americano, basquetebol -, a adoração de ícones do cinema, a paixão pela paisagem de fronteira e o Homem que por lá vagueia, etc.) são objecto de despudorado fascínio em qualquer lugar do planeta. Algum problema? Não.

E para quando Don DeLillo, o mais atípico (e, hélas, europeu) dos grandes escritores dos E.U.A.?

(Texto publicado também no Auto-retrato).

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