sexta-feira, 31 de outubro de 2008

Bomarzo/Manuel Mujica Lainez


O Renascimento não terá sido a época mais fascinante da História apenas porque a História não tem épocas fascinantes, é neutra e limita-se a ser a soma consecutiva dos dias. O nosso olhar, porém, não pode ser neutro; deveremos cultivar os nossos fascínios e pequenas manias, avaliar e valorizar os acontecimentos passados para, já se sabe, regularmos o presente da maneira mais sensata possível. O passado é a medida do presente e o exemplo para o futuro, no melhor dos mundos.
Esqueçamos portanto a objectividade. O interesse do Renascimento funda-se essencialmente no seu carácter de confluência de tempos: o fim da Idade Média e de uma sociedade largamente dominada pela Igreja Católica, a redescoberta da cultura clássica e a consequente revolução a todos os níveis: político, cultural, artístico. Não vale a pena dissertar muito sobre as razões do florescer renascentista, antes esclarecer que aquilo que somos agora, para o mal e para o bem, nasceu ali; o Humanismo, raiz de todo mal e todo o bem, é aquilo que melhor caracteriza a essência do Homem moderno.
E o mal, cinzento e baço, pulsava naquela época. É esse o tema de Bomarzo, de Manuel Mujica Lainez, a sua razão e a tensão invisível que dominou a vida (e a pós-vida) de Vicino, duque de Orsini, exemplo perfeito do homem capturado por este nó temporal, hesitando entre a violência cruel dos príncipes italianos e a beleza da arte. Retrato de um homem e espelho das contradições da península, o romance de Lainez, empurrando por um sopro épico romântico, tenta sobretudo entender as contradições da História. O corcunda Orsini, ilustre descendente de uma família de condottieri (homens de mão de príncipes), vê-se no improvável (as estrelas não o previam) papel de herdeiro da crueldade de uma época e patrono das artes novas, emergentes. A sua deficiência física é simbólica, claro, como se a corcunda ilustrasse o peso do orgulho familiar e debotasse a beleza que a alma de Orsini ostenta. O jardim mandado construir por ele, repleto de quimeras, monstros e aberrações da Natureza, é simultaneamente um exemplo da perfeição maneirista e galeria de pecados e atrocidades cometidas por Orsini em vida. 
O romance de Lainez é necessariamente um fresco de época, escrito num ritmo fluido, socorrendo-se de uma linguagem barroca que não é desvirtuada pela tradução elegante de Pedro Tamen. No futuro, Vicino olha para trás e tenta perceber que Homem terá sido, e ao fazê-lo explica ao leitor que época foi a vivida por ele. Como nos bons romances históricos, interessa menos a reconstituição e a investigação que foi feita (apesar de se notar que ela foi extensa e séria) e mais o capturar de um espírito, de um sentimento; que sentia quem viveu em tempos que admiramos e a que já não podemos aceder? O esforço de imaginação de Lainez é assombroso, mas não estéril; não há pirotecnias, apenas uma conservadora sobriedade, a melhor forma de representar um momento cristalizado da História.
Muitas vezes me lembrei de Obra ao Negro, de Marguerite Yourcenar, ao ler Bomarzo; como se Zenão, criado pela escritora francesa, fosse o reflexo invertido do duque de Orsini. Zenão, o humanista que se limita a observar e a registar a perversa natureza dos homens, e Vicino, que se deixa submergir pelo mal que o cerca. Quem poderá dizer que a História nada nos ensina, nada nos pode ensinar?

(Bomarzo, de Manuel Mujica Lainez, foi publicado pela Sextante).

quarta-feira, 8 de outubro de 2008

Um fio apenas

Não tenho dúvidas de que o amor que o Homem ganhou aos livros nasceu durante as noites passadas em cavernas escuras, contando histórias à volta de um fogo a apagar-se devagar, exorcizando espíritos e mortes e medos. O registo escrito é outra forma de uma história sobreviver. Mas é tão incerto como os contos passados de geração em geração, e deles sempre dependente. Os primeiros livros da civilização ocidental, a Ilíada e a Odisseia, são o testemunho de relatos anteriores, e grande parte da sua importância aí reside. Mas quem sabe o que se perdeu com a transcrição para a linguagem escrita? O exercício de distorção e construção que a transmissão oral permite perdeu-se com a fixação do texto, formatou o pensamento do leitor. Mas não fechou as portas ao espírito humano. Quase três mil anos depois, continua-se a escrever inúmeros livros que ainda tentam compreender na totalidade a mensagem transmitida nos textos homéricos. Mas estão tão longe (ou tão perto) como as interpretações que Aristóteles fez apenas duzentos anos depois. Cada novo tomo surgido apenas multiplica pontos de vista, contribui com mais um tijolo para o edifício que tem crescido a partir dos alicerces originais legados quem sabe por que escritor. Somemos agora apenas estes dois livros e os milhares que se seguiram em torno deles aos milhares que se escreveram e perderam, e reencontraram, ao conjunto de todas as obras importantes (esqueçamos aquelas que não merecem o estatuto de literatura) alguma vez escritas e obteremos aquilo que se pode assemelhar a uma biblioteca infinita, como a de Borges, uma biblioteca com corpo de cidade onde as ruas desembocam em espelhos que duplicam imagens dentro de espelhos, ruas sem sinais numa cidade sem mapa onde invariavelmente acabamos por nos perder. Algures, perdido neste labirinto de ruas, becos, avenidas, ainda temos o Homem que, à luz de uma fogueira que morre, tenta, com o esforço das palavras que ainda faltam, relatar a caçada me que quase foi caçado. E os outros que, presos no abismo das múltiplas figurações do mundo, o ouvem, mergulhando lentamente na História.

(Texto publicado antes no Arquivo Fantasma).

segunda-feira, 6 de outubro de 2008

O umbigo dos outros



Depois de um dos membros da Academia Sueca que atribui o Nobel da Literatura, Horace Engdahl, ter vindo a público referir-se à suposta menoridade da literatura norte-americana (ou, mais concretamente, estado-unidense), não se vislumbram hipóteses de prémio para Don DeLillo – repare-se, falo em DeLillo e não em Philip Roth, embora Thomas Pynchon também pudesse ser nomeado como próximo não-nobel americano.

Ora, eu achei piada às vistas curtas do senhor sueco, não por que não tenha razão – não tem – mas porque li, logo de seguida, uma ou outra indignação de admiradores de Roth e/ou pró-americanos empedernidos que disparam ao primeiro farejado odor de anti-americanismo. As vistas curtas do sr. Engdahl são prova de uma ou duas coisas, portanto: de que existe ideologia por trás das intenções do júri, se não sempre, muitas vezes; e, principalmente, que os membros se dão ao trabalho de realmente ler milhares de páginas produzidas por autores que não escrevem em inglês (duvido que leiam autores franceses, duvido até que eles não acreditem que a França terminou enquanto país quando Marguerite Yourcenar – que não recebeu o Nobel – morreu). Vamos lá ser sérios: partindo do princípio de que o Nobel é, de facto, o prémio mais importante que um escritor pode receber (e de que recebê-lo é essencial, para a obra ou para o autor), quantos de nós poderão dizer que este ou aquele escritor merece o prémio, em detrimento de outro? Porque a vida de um leitor, caros amigos, é uma vida falhada, em perda; por cada novo escritor que conhecemos (ainda que sejam largas dezenas por ano), há cem de que nunca iremos ouvir falar, seja pela inexistência de traduções em qualquer língua que entendamos, seja porque sim, porque escolhemos. São coisas óbvias, eu sei, mas a humildade impede-me de não as dizer de quando em vez. Queremos falar de gosto? Não me interessa, declaro que a subjectividade não me assusta. Mas antes que embarque na barcaça romba da retórica estéril, deixem-me que pegue num excerto (é sempre bom pegar num excerto) do tipo que escreve sobre literatura mais ideologicamente motivado que eu conheço (com o Alexandre Soares Silva muito perto, mordendo os calcanhares): João Pereira Coutinho, pela mão do Pedro Vieira: “e, segundo, porque o Nobel premeia escritores humanistas, ou seja, optimistas, que oferecem à academia sueca uma visão inspiradora, e muitas vezes sentimental, da natureza humana.” Não sei de que escritores fala ele, mas espero que não seja de Saramago, Dario Fo, Harold Pinter ou Joseph Brodski, caso contrário começo a duvidar do, até agora, impecável gosto do cronista, o que seria uma chatice, já que politicamente nunca me servirá uma chícara de chá que seja. Tudo para justificar o horror de não escolher o Roth, por ser americano. Mas Coutinho terá lido tudo o que os membros da Academia leram, todos os escritores humanistas e politicamente empenhados que concorrem entre eles para o premiozinho de uma vida? É esse o meu ponto.

A verdade é que a literatura dos E.U.A. é, quase sempre, “provinciana” e “fechada sobre si própria”. O problema é que o umbigo dos E.U.A. é de supremo interesse universal, e o olhar do mundo inteiro está definitivamente focado nele (ninguém sabia?); julgo que a isto se chama (com todo o despeito que merece) globalização cultural, mas posso estar errado. Toda a grande literatura americana é, antes de mais, um elogio do modo americano de viver; o grande romance americano, de Melville a Pynchon, de Thomas Wolfe a Philip Roth, tem características comuns que reflectem o espírito de uma nação e de um povo: os valores do individualismo, da demanda épica, da transcendência das origens, do combate a qualquer adversidade, a qualquer custo. E, lamento, João Pereira Coutinho, o principal impulso que conduz todos estes heróis americanos (Ahab, Eugene Gant, Sal Paradise, Nathan Zuckerman) é o humanismo. 

Nem Coutinho nem Engdahl. Os valores americanos são universais, as obsessões culturais que aparecem exaustivamente fetichizadas na literatura americana (o gosto pelos desportos autóctones – basebol, futebol americano, basquetebol -, a adoração de ícones do cinema, a paixão pela paisagem de fronteira e o Homem que por lá vagueia, etc.) são objecto de despudorado fascínio em qualquer lugar do planeta. Algum problema? Não.

E para quando Don DeLillo, o mais atípico (e, hélas, europeu) dos grandes escritores dos E.U.A.?

(Texto publicado também no Auto-retrato).

domingo, 5 de outubro de 2008

Amerika (a leitura inacabada) II


Fascinante acaba por ser o facto de Kafka nunca ter visitado a América. O país onde Karl desembarca é imaginário, uma construção baseada em relatos fragmentários de primos seus que visitaram o Novo Mundo, leituras de livros, e, acima de tudo, no desejo que Kafka tinha de criar uma história onde pudesse encaixar o seu modelo ficcional. (Se bem que a técnica de Kafka não se baseie num plano pré-estabelecido. Ele avança na escrita aos solavancos, sem uma linha narrativa prosseguida, condicionado pelos períodos depressivos que, regularmente, regressam à sua vida. Enquanto Fernando Pessoa, por exemplo, libertou a sua energia esquizofrénica fragmentando o ego em dezenas de heterónimos, Franz Kafka dirigiu - involuntariamente, parece-me - a tensão para o interior, criando histórias que descrevem um arco que, a cada volta, encerra mais a sua órbita, uma espiral que desemboca num ponto sem retorno, ou nem sequer termina, suspendendo-se na sua trajectória.) É completamente secundário, portanto, o facto de Kafka localizar Boston na outra margem do rio Hudson, em frente a Nova Iorque, ou falar de uma cidade, Ramses, que, na realidade, não existe. Os espaços, no escritor checo, são sobretudo mentais. Covis e calabouços, labirintos e torres a perder de vista, barcos apinhados e estradas que desembocam no vazio, quartos escuros com janelas a dar para um simulacro de vida inatingível. O horizonte aberto da América é uma imagem nunca vislumbrada por Karl.

sábado, 4 de outubro de 2008

Amerika (a leitura inacabada) I


Karl, de labirinto em labirinto, vai descobrindo o que de melhor a América tem para oferecer. Expulso do Paraíso, primeiro, expulso da terra dos homens, depois, Karl é conduzido por forças exteriores que não consegue (nem quer) controlar, até um fim que, sabemos nós, nunca será concretizado. O que Kafka pensara para Karl foi para sempre subtraído ao leitor, fiquemo-nos pelas conjecturas. Existe uma tal força na atitude passiva de Karl que, de modo algum poderemos ficar indiferentes ao avanço inexorável da sua trajectória sem direcção aparente. E no esforço de Karl sente-se também a vontade de contenção de Kafka, o seu rigoroso ofício de esconder contando tudo, esmiuçando pormenores e fazendo crer que aquilo que o leitor vê é a vida inteira de Karl, quando ele apenas se limita a ser um autómato cumprindo o programa conceptual do escritor. O mecanismo de produção de angústia que reproduz na perfeição a realidade exterior ao real do livro.

(A capa é antiga; e fabulosa. Mas a edição portuguesa é da Livros do Brasil, com o título mencionado, atribuido depois da morte de Kafka pelo amigo e editor Max Brod. A que li intitula-se O Desaparecido, e foi publicada pela Relógio d'Água).

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