quarta-feira, 27 de agosto de 2008

Mozart - O Supremo Mago


Christian Jacq

Bertrand


Confesso que sou um Mozartiano! Várias vezes olhei para a capa deste livro mas nunca achei curiosidade em lê-lo, quanto mais abordando assuntos que pouco me "despertam".
No entanto, procurando uma leitura para romancear o meu Verão encontrei o livro a um excelente preço (10€) e decidi finalmente ler. Já conhecia a obra do egiptólogo Christian Jacq, do qual sou admirador da forma como transmite os seus ensinamentos, de leitura simples, algo romanceada, mas fidedigna na precisão histórica.
Christian Jacq conseguiu transmitir tudo isto em Mozart - O Supremo Mago. Foi muito mais além, conseguiu enquadrar a Vida e Obra do compositor, recorrendo às cartas entre Wolfgang e Leopold Mozart, bem como a documentos historicos referente às diversas sociedades "secretas" existentes ou conhecidas na altura.
Este é sem dúvida um excelente livro, uma merecida homenagem ao Compositor de Deus, uma óptima leitura a acompanhar pela sua sublime criação.

Hotel Memória


Para o leitor desprevenido e com pouco tempo em mãos, uma das coisas que pode ajudar na escolha de um livro é o primeiro parágrafo. O nível de intensidade, o tom, o estilo, o tema, tudo pode ser lido nessas primeiras frases. Para um leitor mais habituado, estas primeiras frases ainda são mais importantes do que para o desprevenido. A audácia do escritor nesta definição inicial é fundamental. E esta audácia passa muitas vezes pela criação de um diálogo com a memória do leitor. Um romance histórico pode começar com um aforismo que defina uma época: “Aquele era o melhor dos tempos, aquele era o pior dos tempos (…)” (Um conto de duas cidades, Charles Dickens). Um épico inicia-se com uma evocação de alguém que conheceu o herói em tempos: “O Sueco. (…) O nome era mágico; também o era a sua cara esquisita” (Pastoral Americana, Philip Roth). Um livro no qual o acaso desempenha um papel importante principia com o desafio ao destino: “Durante um ano inteiro não fez outra coisa senão guiar, viajando erraticamente pela América enquanto esperava que o dinheiro acabasse” (Música do Acaso, Paul Auster).

Poderosas imagens se geram, ao ler estes três exemplos. A Revolução Industrial de Dickens e a sua riqueza crescente contrastando com a pobreza das classes trabalhadoras não coincide exactamente com a realidade que retrata, mas acaba por ser esta a ideia que continua a perdurar no nosso imaginário. A frase do romance descreve esse momento histórico na perfeição. Do mesmo modo, percebemos, no romance de Roth, que desde o início o que vai ser contado é a história de um herói (o Sueco) visto pelos olhos de um simples homem (o narrador). Que mais tarde se venha a revelar que o objectivo de Roth é partir do particular para o universal (a história de um homem, a história de todos os homens), prova a eficácia deste parágrafo inicial; reforçando a intensidade do logro — vai ser contada a história de um homem — espera-se que a revelação, quando aconteça, seja mais dramática. No fundo, é mais difícil entender a História em abstracto. A história de um homem torna a grande História mais humana. A distância entre a vida criada e a vida aludida ainda é maior no livro de Auster. A primeira frase de Música do Acaso é uma síntese do Homem americano: partir, criar novas fronteiras, desafiar o que tem, enfrentar o destino. O leitor apetrechado de suficientes recursos culturais associa este começo a toda a História da América. E não é necessário que alguém aponte este facto a posteriori; a sensação é imediata.

A memória, portanto, constrói a ponte que une a distância entre autor e leitor. A intertextualidade, termo do pós-modernismo tão caro a tantos escritores, não é mais do que isso: o jogo que o escritor faz com a memória cultural do leitor, a provocação que questiona os conhecimentos de outras obras literárias. Quando T. S. Eliot, em Wasteland, concentra toda a cultura literária ocidental num só poema, não faz mais do que aproveitar a bagagem do Homem da sua época, os vinte séculos de cultura que ele carrega. A originalidade é um mito; que pode ser assumido recorrendo ao reconhecimento da herança das obras anteriores. O leitor é convidado a entrar no universo pessoal do escritor, a sua memória de outros textos. E qual o leitor que não gosta de ver que o autor leu as mesmas coisas do que ele?

Posto isto, franqueamos as portas de entrada no romance de João Tordo, Hotel Memória, com um sorriso nos lábios. Logo no átrio, uma frase: “Afinal, a memória não é um acto de vontade. É uma coisa que acontece à revelia de nós próprios.” Que a primeira citação não seja de Tordo, mas sim de Paul Auster, indicia já alguma coisa. A frase de Auster (que não consigo localizar em uma obra concreta) surge antes do romance começar, e de certo modo justifica a existência deste. Porque veremos — vamos estragar já a surpresa — que Auster assombrou toda a escrita do romance, como já tinha sucedido com a primeira obra de Tordo, O livro dos homens sem luz. Admitir a influência é extirpar, logo à partida, a tentação da influência. Harold Bloom não estaria completamente errado ao falar em angústia, mas a verdade é que da angústia pode sair algo de bastante positivo (outro exemplo eficaz é a Obra mais recente do escritor catalão Enrique Vila-Matas). Ora, a memória que anuncia o romance foi o que permitiu ao autor escrevê-la. A outra função da citação é introduzir o tema da obra: já adivinhámos — é, como no romance de Ian McEwan (a chamada de atenção não é despropositada), a expiação. Ainda não começámos a ler, e já sabemos qual a principal referência textual e o tema. Falta o tom. Avançando em direcção ao salão principal, lemos a primeira frase: “Quando a conheci já ela trabalhava para um morto”. Talvez tivesse sido avisado usar uma vírgula a seguir a “conheci”, mas não vale a pena ser picuinhas. A frase é forte, modelar, exemplar. E introduz o leitor a um mundo onde, ao contrário do que acontece na primeira obra publicada por Tordo, o destino não é uma acumulação de coincidências, mas sim um conjunto de decisões erradas que definem o rumo das personagens. É claro que o começo de tudo tem muito de acaso. O narrador conhece Kim, apaixona-se e involuntariamente provoca a sua morte. Neste caso, os deuses não permitiram que ele soubesse da condição de Kim e condenaram-no a carregar com a culpa do seu desaparecimento — e da extinção do amor que tinha nascido entre ambos.

Mas falamos da ilusão da realidade. João Tordo não é um escritor dado a romantismos desesperados (a não ser que a matriz dos mesmos seja literária, isto é, que contenha uma referência a universos de outros escritores, seja a literatura gótica ou policial ao estilo de Edgar Allan Poe). Muito menos é alguém que caia no lugar-comum do herói arrastando o sofrimento metafísico, suspirando pelos cantos da casa — corrente tão ao gosto de grande parte da literatura portuguesa, actual e remota. O herói, que mais tarde será Bartleby, como o escrivão de Herman Melville (mais um membro da família literária do escritor), procura redimir um erro involuntário através de acções muito concretas. Não existe presunção, nem procura de coisas maiores. Perdido na América, um país que não é seu, ele é apenas mais um rosto no meio da multidão — como Karl Rossmann, personagem de Franz Kafka em O desaparecido ou Amerika —, que acaba por se cruzar com a viagem (ou fuga) de outro desaparecido, Daniel da Silva, fadista português que partilha o mesmo destino de Bartleby, fugir depois um conjunto de circunstâncias o ter tornado um exilado do mundo. O que começa por ser um fatalismo, vai-se tornando uma segunda pele para Bartleby e para Daniel da Silva. A história deste último, contada ao narrador em paralelo com a história do primeiro, é uma história de fuga, remorso e finalmente desvanecimento. Daniel da Silva é um fadista com uma voz marcante, que a determinada altura se pode tornar famoso e que deita tudo a perder, passando o resto da vida um passo à frente de quem o quer matar. Como a sua história é contada indirectamente, o leitor nunca tem a certeza sobre o que aconteceu, nem sabe o que ele sente sobre o que aconteceu. A estratégia é simples: tornar o narrador, Bartleby, num êmulo maldito de Daniel da Silva; a mesma história, vinte anos depois, o mesmo destino. O que distingue o destino do fadista do de Bartleby é a escolha; como o escrivão de Melville, o Bartleby de Tordo, prefere não o fazer. Atravessa o país, evocando outras figuras míticas do passado que o fizeram (e como não pensar na coincidência autobiográfica entre o narrado e o autor — ambos estudaram nos E.U.A., partilham as mesmas paixões literárias, etc.), dos peregrinos do passado alargando a fronteira aos escritores da geração beat, redescobrindo o vasto território americano. Em São Francisco, pode começar uma nova vida. Jack Kerouac fez isso, e descreveu a experiência no seu livro Big Sur. Charles Bukowski, boémio estacionado na costa oeste americana, é outro exemplo. O final em aberto deixa-nos acreditar que a última decisão poderá levar Bartleby a caminho de eterna errância, derradeira consequência do pecado que, na realidade, nunca consegue expiar.

João Tordo sobrevive muito bem no deserto da pós-modernidade. Poderia escrever floresta em vez de deserto, mas o termo reflecte o sarcasmo com que muitos olham para a classificação. Notamos a vontade que ele tem de assimilar leituras e influências, integrá-las na história que quer contar; acima de tudo, divertir-se — e sabemos que é quando o escritor parece divertir-se que o trabalho é mais aplicado. Os livros de João Tordo, e este em particular, descobrem a estrutura que os suporta, remetendo o leitor para clareiras de outras florestas, mas ao mesmo tempo escondem, bem escondido, o fio de Ariadne que urde, secretamente, as vidas das personagens. Tudo parece fácil, e a Tordo faltará apenas a autoconsciência irónica da impossibilidade de contar uma história, actualmente. As narrativas desfazem-se, esboroam-se, e apenas com a ajuda dos grandes mestres se consegue ainda erguer tais ultrapassados edifícios. O Hotel Memória do título não é mais que a estrutura que suporta a narração. É pretexto, claro, para contar uma história; mas é simultaneamente a metáfora que define o ofício do escritor: um hotel onde chegamos tarde, fugindo do mundo, a coberto de ameaças exteriores indefinidas. Exílio e reconstrução de uma vida. Não há muito mais que um livro possa dizer; o resto são acabamentos.



Hotel Memória, João Tordo, ed. Quidnovi (há uma edição de bolso recente).


O autor tem um blogue, no qual vai publicando excertos do seu próximo romance.


(Versão ligeiramente corrigida de um texto publicado na revista Malagueta)

segunda-feira, 25 de agosto de 2008

A ler

Dois blogues que tenho acompanhado nos últimos tempos: o diário de um leitor exilado, o Ouriquense; e o blogue involuntário de George Orwell, setenta anos depois, em directo de um manuscrito perdido perto de si.

quarta-feira, 20 de agosto de 2008

O Cavaleiro da Ilha do Corvo

Joaquim Fernandes

Círculo de Leitores / Temas e Debates

Dá-se o caso de entretanto ter lido O Cavaleiro da Ilha do Corvo de Joaquim Fernandes.

Confesso que não estava nos meus planos fazê-lo, mas o Amigo João Caraça, entusiasmado essencialmente com os erros que a obra apresenta, perguntou-me se já o tinha lido e, ao ter respondido que não, decidi nesse momento que o iria fazer. Desta forma, num próximo reencontro estaria munido de argumentos para mais uma prazenteira troca de impressões com o eminente cientista português.

Primeiramente, pensei que não iria gostar do livro devido à forma, isto é, ao estilo da escrita. Contudo, não se pode dizer que o livro esteja mal escrito. Apesar de se tratar do primeiro romance do autor, nota-se que domina já algumas técnicas básicas do género ficcional e o livro até se lê bem.

Claro está que a colagem ao ainda famoso Código da Vinci é evidente – O Cavaleiro da Ilha do Corvo é uma tentativa descarada de fazer um Código da Vinci à portuguesa. As semelhanças são indiscutíveis: um “casal” de protagonistas, sendo que o personagem masculino é também um professor universitário; uma “sociedade secreta” que procura a todo o custo que não se conheça a “verdade”; um sábio idoso, auxiliado por um mordomo, mas que desta feita não é o “mau da fita”; aventuras e peripécias várias ao longo do livro, mas num estilo muito mais “pausado” quando comparado com o Código.

Mas, tal como no Código da Vinci, também aqui estamos na presença de uma conjectura que não chega a teorema. Isto é, por muitas voltas que o autor dê, por muitas ideias que apresente e por muito que se esforce para que tudo faça sentido, o certo é que as bases são pouco sólidas. Essencialmente, o romance anda à volta de uma hipotética estátua encontrada pelos navegadores portugueses na Ilha do Corvo, decorria o reinado de D. Manuel I e que, juntamente com outros achados, provaria que as ilhas haviam sido descobertas muitos séculos antes dos navegadores portugueses. A descrição desta estátua é feita por Damião de Góis, o que, para o autor, é suficiente como garantia de veracidade. Ou seja, Damião de Góis é, para o autor, uma fonte autorizada e irrefutável. Contudo, e apesar de termos em grande conta o prestigiado humanista português, temos de relembrar que é o mesmo Damião de Góis que dedica várias linhas na sua Descrição da Cidade de Lisboa à existência de tritões, nereidas e sereias nas águas limítrofes à cidade. Apesar de não emitir qualquer parecer, é evidente, pela leitura das suas palavras, que não descarta a hipótese e até, pelo contrário, dá a entender que acredita na existência desses míticos seres. Assim, poderíamos dizer que a acreditar em tudo o que Damião de Góis escreveu, deveríamos também acreditar na existência de tritões, nereidas e sereias nas águas e grutas da costa portuguesa…

Mas não é só neste aspecto que o livro é pouco consistente; alguns erros grosseiros, como aquele que o nosso Amigo João Caraça nos realçou, que o autor confunde meridianos com paralelos, fazem com que o livro perca alguma da credibilidade.

Ainda assim, trata-se de um livro que satisfaz bastante, enquanto obra de ficção, pois tem um enredo bem encadeado e cativante.

Contudo, como dissemos acima, a conjectura não passa a teorema. Se fosse esse o caso, o autor teria escrito um ensaio e não uma obra de ficção. Este livro padece da mesma enfermidade do Código da Vinci – pretende apresentar uma teoria nova, escondida pelas entidades e instituições instaladas e que pode revolucionar a forma como vemos o Mundo, mas não passa de teoria com demasiadas falhas para ser aceite unanimemente.

domingo, 3 de agosto de 2008

Verão

Há quem guarde para o Verão as leituras extensas, os tijolos para os quais não teve paciência, nem tempo, para ler durante o resto do ano. Há quem comece livros e nunca os termine; há quem os abandone logo no início e os substitua por algo mais leve, digamos, como se a leveza fosse uma qualidade material e não um ponto de vista. Há quem escolha policiais, porque vão bem com a praia e as esplanadas, as gotas de suor sobre a areia e o incómodo vento de fim de tarde; há quem corajosamente recuse a leveza do resto do ano e mergulhe em profundidade, como se ler fosse semelhante a um desporto náutico; há quem nunca leia, e continue a não ler durante o verão, apesar do esforço inglório e breve a que se remetem nos primeiros dias de férias.

Pois bem, ler não implica uma pausa no pensamento - mas pode ser na acção; vi as melhores mentes da minha geração perderem-se nos meandros lodosos da acção, sem dedicarem um minuto que seja das suas vidas ao pensamento. A leitura deveria ser uma actividade laboral, um trabalho no intervalo da acção; de outro modo, a verdadeira acção. O ócio não é uma desistência; é uma entrega à sabedoria, e dessa forma à acção. E a leitura deve ser parte importante de um momento de ócio. A culpa, como em quase tudo, é dos cristãos. Mais exactamente, da maldita ética protestante, que valoriza o trabalho acima de tudo, considerando-o uma medida da bondade humana; e recusando o ócio como mola da acção, motor da produção humana. Os gregos, como sempre, estavam certos.

Por isso, recusar as férias como um tempo de leituras é a solução mais sensata; ler todo o ano, sobretudo no Verão, ou não. Sobretudo recusar a obrigação de ler isto ou aquilo, nesta ou naquela altura. Ler apenas. Enriquecer o ócio. O cálcio necessário para o intelecto. Produzir.

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