segunda-feira, 1 de setembro de 2008

Direito de Resposta

Após uma amistosa troca de e-mails com o Prof. Joaquim Fernandes, após o meu post aqui no Arte de Ler sobre o seu romance O Cavaleiro da Ilha do Corvo, o autor aceitou o desafio de escrever um texto como “resposta” à minha recensão crítica da sua obra. Eis o texto:

Ficção e Realidade da “Estátua Do Corvo”

O objectivo do meu romance O Cavaleiro da Ilha do Corvo não foi produzir obra-prima ficcional, mas sim colocar à disposição dos leitores, pela primeira vez sobre a matéria, um painel documental documentado sobre a hipótese da verosimilhança da polémica estátua corvina. Sendo antes de mais historiador procurei atestar essa competência na confortável bibliografia, reunida ao longo de mais uma década, com intermitências, e exposta no final da obra. Sinceramente, nunca me preocupei com o modelo do “Codigo da Vinci”, ainda que logicamente o “esqueleto” ficcional da obra o torne comparável. Mas aqui nem pretendi ser original: bastou-me o insólito do acervo documental, ignorado pela generalidade dos leitores – incluindo muitos colegas académicos – para superar as eventuais fraquezas do enredo.

O importante é mesmo correlacionar a descrição de Damião de Góis, os nomes, datas e detalhes que me fazem crer – a mim a outros muito mais notórios investigadores, como o açoriano António Ferreira Serpa. Ao referir os tritões de Góis, aceitar-se-á que existem diferenças qualitativas, informativas, entre uma narrativa do tipo “Era uma vez um tritão que foi visto no Tejo...”, por exemplo, e a descrição goesiana que sustenta: “Em 1529, Pedro Fonseca, donatário das Flores e do Corvo, deslocou-se à ilha do Corvo...”

Por outro lado, Damião de Góis é creditado pela descrição do primeiro rinoceronte visto em Lisboa; mas já é suspeito de ingénuo por aceitar relatos fabulosos de marinheiros...Em que é que ficamos?

O problema não é acreditar ou não em tritões, mesmo pela pena de Damião de Góis, mas aceitar que o cruzamento de todas as pistas elencadas na obra se completam reforçando a credibilidade do testemunho do cronista, referido na primeira pessoa – assinale-se.

Certamente que o arquitecto régio Duarte Darmas não é lenda, que o pedreiro do Porto, o donatário Pedro da Fonseca, a data de 1529, a legenda não-latina, etc., etc. também não são propriamente elementos que constem habitualmente de um relato vago, lendário. Então, os relatos da historiografia árabe e o mapa dos Pizzigani, de 1367, com referências explícitas às “estátuas-marco”, deixam muitas incógnitas no ar...

Sabe-se, no fundo, que existe aquela reacção inconsciente da nossa pretensa superioridade cultural, do eurocentrismo, que impede os nossos olhos de ver, com a luz da inteligência, os documentos disponíveis. Como explicar ao vulgo que, por exemplo, dois mil anos antes de Vasco da Gama, os Cartagineses deram a volta à África em sentido contrário da rota do nauta português? Não consta que tivessem defrontado o Adamastor, aliás figura recorrente usada pelas talassocracias marítimas para assustar a concorrência... E Portugal não fugiu à regra.

O que tentei fazer no meu despretensioso “romance” (modalidade por que optei em lugar de um porventura maçador ensaio) foi colectar e oferecer aos leitores “comuns” toda a informação disponível sobre o tema – que considero fascinante e tem ligações, como se sabe, a toda uma tradição do imaginário ocidental atlântico e “atlântido”, onde se fundem literatura e história. Sou contra todos os preconceitos de ordem cultural, do tipo “antes de nós o Dilúvio” que fez o nosso grande vate, num atitude patriótica, exaltante, “decretar” o silêncio da “antiga musa” e que os mares eram virgens até nós, por inspiração e escolha divina, termos desfraldado as velas. Piedosas “boutades”, típicas de uma consciência nacional em fim de ciclo e crise identitária, como sucedeu noutras épocas e noutras paragens.

Não se trata aqui de um “campeonato” entre portugueses e fenícios ou cartagineses ou outros, mas sim de uma problematização de um assunto, que foi muito discutido no século XIX e inícios do XX entre nós.

Se nos habituarmos a ver o génio nacional das Descobertas Modernas como parte de uma cadeia de aquisições sucessivas pela Humanidade, talvez possamos perceber uma nova visão da História evolutiva da nossa espécie.

Com os cordiais cumprimentos,
Joaquim Fernandes
Universidade Fernando Pessoa

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