domingo, 21 de setembro de 2008

Tempo (Austerlitz, de W. G. Sebald)

A certa altura, o narrador e Austerlitz iniciam um passeio ao longo da margem do Tamisa, pela área de Docklands em direcção ao túnel que atravessa por baixo o rio e desemboca em Greenwich. Cruzam o parque e entram no Observatório Real, deambulam pelas salas, observando os instrumentos do tempo que ali estão expostos. Ao ler esta passagem, lembrei-me de um dos percursos que encetei aquando da minha primeira visita a Londres, semelhante em muitos pormenores ao descrito no livro. Mas a coincidência fica-se por aí, pelos lugares físicos que se repetem; os espaços mentais são radicalmente diferentes. O Observatório Real, conhecido por qualquer turista por causa do meridiano que toma o nome do bairro e do parque, reina sobre a colina que sobe desde o rio, emprestando ao conjunto uma atmosfera romântica, particularmente bela em dias de nevoeiro. Foi num destes dias que visitei o jardim, mas nem sequer entrei no edifício que alberga o museu devotado ao tempo e à observação astronómica. Austerlitz e o narrador entram, passeiam pelos corredores e salas, e ao fim de algum tempo retomam o diálogo - quase monólogo - que tinham interrompido antes da curta jornada em direcção a Greenwich. As salas estão praticamente vazias, à excepção de um turista japonês que, talvez por engano, entra na sala de observação onde os dois se encontram depois de terem visitado separadamente o museu. Rapidamente desaparece, e os dois reiniciam a conversa. No lugar onde o tempo se assume em várias camadas de realidade, eles recordam. 
O propósito de Sebald é servido na perfeição; eu, daqui de um futuro lendo e recordando as salas por onde nunca caminhei, compreendo as artimanhas do tempo. O tempo que transforma o mundo, tornando-o mais lento e pausado. As escolhas mudam. O que me interessava aos vinte anos pouco tem a ver com o que me interessa agora. E o dispositivo montado por Sebald acaba por trazer à contenda outro livro, A Invenção de Morel, onde passado e presente coexistem de forma harmoniosa. Será talvez demasiado óbvia a literalidade da história de Bioy Casares: a coexistência de tempos resulta do funcionamento da mais importante das faculdades, a memória. Em Austerlitz, tudo acontece em função deste maravilhoso dispositivo que nos distingue do resto do reino animal. Mas qualquer dom tem o seu reverso, a maldição que o acompanha; a maldição de recordar é a aguda consciência da passagem do tempo. Os objectos do passado que Austerlitz e o narrador observam são, simultaneamente, testemunho da capacidade decisiva de invenção do ser humano e símbolo da inutilidade de tudo. Tempo nunca reencontrado.

(Texto publicado em tempos no Arquivo Fantasma, com uma ou outra coisa diferente)

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