Como ler um livro? Levante-se da cadeira onde está sentado a olhar para o ecrã, saltando de site em site, entre notícia de jornal virtual e página com conteúdo suspeito, dirija-se à estante e procure entre as lombadas nada menos que o assombro. Sabe que raramente o encontra. Paciência, paciência. O assombro, como algumas mulheres, surge para mudar a vida nas ocasiões mais inesperadas. Pense nisto: um livro pode não mudar a sua vida, mas mudará de certeza as horas a que a ele se dedica. E o modo como pensa a literatura. E, se for mesmo excepcional, a forma como encara a vida. Pouca coisa? Não brinque. Entre esta e outra reflexão, espreite pela janela. Vê o sol, o tempo claro, a vida a correr apressada? Está a ver o que perde? Entre algumas horas de ruído interior, silêncio em volta, e a pressa da vida quotidiana, escolha. As pessoas, claro, são importantes. Mas serão melhores que Emma Bovary, o coronel Aureliano Buendia, Gregor Samsa ou Blimunda e Baltasar?
Regresse às lombadas que gritam. Passe os dedos pelos títulos. Quantos leu, até agora? Pretende resgatar do limbo algum que tenha ficado perdido, entre compra e esquecimento da mesma? Ainda se lembra de ter comprado aquele romance do Chesterton, de lhe terem oferecido aquela antologia de William Blake? De ter roubado, em algum dia perdido nas teias da memória, aquele decisivo diálogo sobre o amor, de Platão, e de o ter partilhado com a sua amada, numa noite fria de inverno, à lareira? Fique aí. Pare. Abra o livro, sinta o papel, as letras impressas, passe o nariz pelo cheiro amarelo que dele emana. Amarelo, sim, amarelo. É sempre amarelo o cheiro de livros velhos. Imagine Jorge Luis Borges na sua biblioteca, ouvindo as palavras dos seus leitores, mergulhado nas silenciosas trevas da cegueira. E as palavras, soando, pairando, em redor, tão imateriais como o ar, cativas de uma matéria primitiva, clarão inicial da inteligência humana. Imagine Borges e o seu olfacto apurado, captando os mil e um cambiantes que as palavras dos outros transmitem.
Imagine que é Borges, e escolha o seu livro pelo cheiro. Pelo tacto. Ignore todo um passado de leituras, de preconceitos e escolhas. A página em branco brilha à sua frente. Ler um livro, como escrever um conto - do nada nasce tudo. Estará pronto para o seu big bang?
Imagina ser isto um exagero? As palavras tendem para o exagero. Mas um livro recusa o excesso, repõe a ordem no mundo. O esquema de um livro serve de modelo para a vida. Já viu como as frases encaixam umas nas outras, em harmonia, ritmadamente, até construirem parágrafos? E os parágrafos, já reparou como se sucedem numa cadência clássica, acompanhando o fluir do pensamento do escritor, a melodia interior que ele cria? Nada existe fora do texto. Conhece alguma vida assim tão perfeita?
Entrou no jogo. Pegou no livro. Sentiu-lhe o pulso. Sentou-se no cadeirão que escolheu, entre dezenas, na loja de móveis. Um livro precisa de conforto. Um livro precisa que ignore a vida que corre lá fora. Quem lê deveria ser obrigado, antes, a fazer um curso de apneia. Mergulhar dentro do livro e tornar-se peixe. Ler não é uma arte. É outrar-se, devir outro. Desaparecer dentro de si próprio. Reconhecer-se.
Regresse às lombadas que gritam. Passe os dedos pelos títulos. Quantos leu, até agora? Pretende resgatar do limbo algum que tenha ficado perdido, entre compra e esquecimento da mesma? Ainda se lembra de ter comprado aquele romance do Chesterton, de lhe terem oferecido aquela antologia de William Blake? De ter roubado, em algum dia perdido nas teias da memória, aquele decisivo diálogo sobre o amor, de Platão, e de o ter partilhado com a sua amada, numa noite fria de inverno, à lareira? Fique aí. Pare. Abra o livro, sinta o papel, as letras impressas, passe o nariz pelo cheiro amarelo que dele emana. Amarelo, sim, amarelo. É sempre amarelo o cheiro de livros velhos. Imagine Jorge Luis Borges na sua biblioteca, ouvindo as palavras dos seus leitores, mergulhado nas silenciosas trevas da cegueira. E as palavras, soando, pairando, em redor, tão imateriais como o ar, cativas de uma matéria primitiva, clarão inicial da inteligência humana. Imagine Borges e o seu olfacto apurado, captando os mil e um cambiantes que as palavras dos outros transmitem.
Imagine que é Borges, e escolha o seu livro pelo cheiro. Pelo tacto. Ignore todo um passado de leituras, de preconceitos e escolhas. A página em branco brilha à sua frente. Ler um livro, como escrever um conto - do nada nasce tudo. Estará pronto para o seu big bang?
Imagina ser isto um exagero? As palavras tendem para o exagero. Mas um livro recusa o excesso, repõe a ordem no mundo. O esquema de um livro serve de modelo para a vida. Já viu como as frases encaixam umas nas outras, em harmonia, ritmadamente, até construirem parágrafos? E os parágrafos, já reparou como se sucedem numa cadência clássica, acompanhando o fluir do pensamento do escritor, a melodia interior que ele cria? Nada existe fora do texto. Conhece alguma vida assim tão perfeita?
Entrou no jogo. Pegou no livro. Sentiu-lhe o pulso. Sentou-se no cadeirão que escolheu, entre dezenas, na loja de móveis. Um livro precisa de conforto. Um livro precisa que ignore a vida que corre lá fora. Quem lê deveria ser obrigado, antes, a fazer um curso de apneia. Mergulhar dentro do livro e tornar-se peixe. Ler não é uma arte. É outrar-se, devir outro. Desaparecer dentro de si próprio. Reconhecer-se.
3 comentários:
Bem-vindo, Sérgio!
Quanto ao texto, revelador, uma ode ao livro, a todos os livros, mesmo àqueles de que não gostamos muito ou não gostamos nada.
Ler não é uma arte, como tu dizes, mas a leitura requer algo de artista em nós. Precisamos de saber criar as imagens que os autores nos transmitem e esta é uma arte que vamos adquirindo e vamos, de cada vez, exigindo mais dos autores, esperando engrandecimento através da leitura... reflexões ao sabor da pena, proporcionadas pelo teu texto.
Recebe o meu abraço e, uma vez mais, sê bem-vindo.
Agora, só falta o sô Pedro Vieira...
Simplesmente belas estas palavras...
Reconheci-me dentro delas...
Não conhecia o site Zéfiro...mas chega sempre o "tal" momento; esse "tal" click que nos faz actuar perante algo ou alguém, como o som do "sininho" do Peter Pan; sempre que isso me acontece...é por aí que vou identificando assim: "o quê"?! ou "porquê"?!
Por isso perdoe, mas não basta apenas sentir a leitura, terá de haver algo mais. É necessário por exemplo, que exista a "tal" vibração, que nos faz dar o salto... interior! É por via dessa parceria, que nos encontramos então corpo a corpo com algo, sem prever sequer o que nos espera...e de surpresa em surpresa vamos trilhando o caminho - mesmo que a velocidade a que nos propomos seja literalmente...estar parados!
quietos!
absolutamente encaixados na moldura do tempo, feito de tantos momentos idênticos a este.
Eis-me portanto aqui.
Quando iniciei o exercício do sentir, peguei nessa sua Arte e pela sensibilidade, reconhecida pelo "motor de busca" - assim chamo o coração - fui confrontada com o produto final: um arrepio! Vezes há, que sinto uma leve tremura interior, quase incontrolável...como quem pisa o palco pela 1ª vez...se bem que as seguintes sejam iguais também... música, teatro ou dança. É portanto, nessa Arte de criar, de envolvência anímica, que a leitura acontece e nos toma por inteiro.
Conclusão: amei!
Se não, seria incapaz de "desaparecr dentro de mim própria" - parafraseando-o - ou sequer sentiria o "tal" arrepio na espinha.
Fique bem então...
Agradeço ainda, a essa "tal" vibração que daí brotou e me atraiu para a "coincidência" de "(re)conhecer"...a escrita.
Maria
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